O CONTINENTE GULAG

17-03-2022 18:29

Fonte: MILLION, Georges. Guère épais : dessins d'actualité 1991-1994 et dessins d'humour. Albertville: Georges Million, 1994. 168 p. Copyright: (c) Georges Million

Na propaganda pró-Putin, que invadiu os OCS de fio a pavio, nas mentes mais confusas, e de muitos outros, que evidentemente perderam o dom do intelecto, argumentam e existe a ideia de que no final a culpa é nossa porque fomos provocar o urso adormecido: A NATO/OTAN expandiu-se demasiado. No entanto também se argumenta, continuando a ter-mos a culpa de esquecer que a Rússia sempre foi um império e que continuará a sê-lo para todo o sempre, enquanto a continuamos a tratar como um país normal. Disparates? Vale a pena fazer algumas reflexões políticas e históricas. Mas primeiro interpretar o que muito se disse até agora.

Digamos que Putin se incomodou com a adesão de países do antigo bloco soviético à NATO, isso justifica a invasão de um país pelas armas, a destruição de cidades e a morte de civis? É uma questão de proporções mesmo para aqueles que defendem as teses da barbárie.

Outra questão sobre o caso da Rússia como grande potência imperial levanta, por um lado a declinação oitocentista da ideia de Império, ou seja, a de acumular terras e homens, implacavelmente, sob uma única autoridade - ideia completamente asinina de império, ordinária e ultrapassada, num mundo onde a terra de quem a trabalha já não é a fonte de riqueza, mas sim as mentes criativas. Quer ser ser um império? Torne-se numa grande potência da economia, do conhecimento, da pesquisa científica, da arte, não o faça roubando os seus vizinhos, subtraindo-lhes os seus pertences, tirando-lhes as suas vidas!

Mas tentemos abordar o problema de outro ponto de vista. A Ex-URSS implodiu porque não conseguiu manter-se de pé, pela ferocidade da repressão a toda liberdade, pela total irracionalidade na gestão de seu sistema económico e pelas suas ambições expansionistas. Ninguém atacou a União Soviética, ninguém bombardeou as suas cidades ou atentou contra a vida dos seus líderes políticos: conseguiram fazer tudo sozinhos, cometeram suicídio porque se comprometeram com um modelo que não funcionou. Se alguém humilhou a Rússia, foram seus líderes políticos.

Após o colapso da União Soviética, várias nações tornaram-se independentes e, recuperaram a sua total autonomia. Sem querer filosofar excessivamente, vale a pena por um momento colocarmo-nos no lugar desses países. Depois do sofrimento de privações materiais, privação de toda a liberdade durante décadas, sentimentos nacionais e religiosos reprimidos, esses novos países, entre escolher ficar com Moscovo ou olhar para aquele Ocidente que brilha com abundância económica, liberdade, criatividade e exuberância - a resposta é, de facto, para os que conseguiram concretizar, a entrada na União Europeia.

Além disso, muitos desses países experimentaram o jugo da tirania Moscovita, os carros de combate pelas suas ruas, e continua ainda muito fresco na memória das gentes. Hungria, Polónia, Republica Checa e Republica Eslovaca, para não mencionar as Repúblicas Bálticas. Logicamente, na primeira oportunidade, concretizaram o obvio: optaram por se colocar sob a proteção da NATO, uma forma de seguro sobre a continuação da liberdade, caso alguém na Rússia começasse a ter novamente alucinações imperiais. Dito de outra forma, não foi a NATO que os incorporou, mas foram eles que pediram para a integrar porque se sentiam mais protegidos.

Assim, a escolha de não ficar com Moscovo, mas sim de aderir à NATO ou à UE, foi uma escolha livre dos países europeus da antiga URSS que optaram por um modelo mais atrativo e seguro do que o de Moscovo. Mais uma vez, a Rússia fez tudo sozinha contando, pela segunda vez, com um modelo fracassado em termos económicos - a dependência total do país da extração e venda de matérias-primas e produtos energéticos; e em termos políticos - um novo despotismo oriental, mesmo pior do que a dos soviéticos, já que agora tudo depende das visões fantásticas de um único homem no comando.

Trata-se de uma comparação de modelos. Por um lado o modelo ocidental de democracias liberais, por outro o modelo autocrático oriental da Rússia e da China. A questão é que o primeiro é atraente; o outro é repulsivo e por isso em Moscovo têm que recorrer à ameaça ou seja, intrigar e guerrear para impedir que outros países se afastem, como demonstra o caso da Ucrânia, e a loucura de Putin, e isso é pensar que podemos manter a amizade dos amigos obrigando-os pela força.

Talvez tenhamos chegado ao ponto. Os sistemas em que a força deve ser utilizada para impedir a fuga têm um único nome, são sistemas prisionais. Isso significa que o projeto político de Putin nada mais é do que a construção de um imenso campo de concentração no qual os países da Ex-URSS e os próprios cidadãos russos possam ser presos à força, aliás à imagem de outros já existentes derivados da mesma ideologia. Não um arquipélago mas um continente gulag.

No final, esperemos que os oligarcas queiram poder gastar o seu dinheiro num planeta de pé e sem radiação, e que o povo russo também ame as suas crianças, como canta Sting.